quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A tromba de água


Artigo de opinião publicado no diário ‘As Beiras’
em 31 de Janeiro de 2011


A propósito do recente caso com o Cartão do Cidadão no dia das eleições presidenciais, que impediu que um número indeterminado de eleitores exercessem o seu direito de voto, disse no Parlamento o Diretor Geral da Administração Interna – ao mesmo tempo que alertava para o facto de não ser informático – que “estávamos preparados para uma chuva intensa e o que tivemos foi uma tromba de água”.

De um ponto de vista técnico – aquele que nos interessa nesta análise – não será preciso ser grande especialista informático para perceber que a causa imediata do problema foi um forte congestionamento do sistema, por esgotamento da capacidade das linhas de comunicação, do servidor que processa os pedidos, ou de ambos. A afirmação do supracitado responsável traduz, assim, com alguma propriedade, o que se passou.

A análise estará, no entanto, muito incompleta se se ficar por aqui. Não nos podemos, nem devemos, esquecer de que o Cartão do Cidadão é a face visível de um projeto de modernização administrativa de grande envergadura, reconhecidamente estratégico, sobre o qual se construíram e se continuam a construir incontáveis medidas Simplex, cujo elevado custo global deveria ser, como em qualquer projeto, compensado pelos benefícios que daí advêm.

Importa, por isso, avaliar até que ponto foram seguidas as boas práticas de Engenharia (de sistemas de informação) na concepção e implementação não só dos sistemas associados ao Cartão do Cidadão mas, também, e já agora, na concepção e implementação de um grande número de outros projetos de modernização e simplificação administrativas que insistentemente se anunciam nos meios de comunicação social.

Deve, assim, perguntar-se: que levantamento de necessidades foi feito? Foram considerados todos os tipos de utilizadores e utilizações? Até onde foi levada a análise de requisitos? Que alternativas foram consideradas? Que opções de projeto foram tomadas e porquê? Que especificações foram desenvolvidas e de que forma respondem aos requisitos? Qual a arquitetura dos sistemas de informação que estão subjacentes ao cartão? Qual o impacto sobre os sistemas existentes? Como é que esses sistemas foram dimensionados? Que testes de funcionalidade e testes de carga foram efectuados? De que forma foram acauteladas as necessidades de crescimento e de atualização? Que mecanismos de contingência foram previstos e/ou existem? Qual o impacto sobre os utilizadores?

Estas são as questões que devem ser contempladas no projeto de engenharia de qualquer sistema informático, seja ele do Estado ou não, mas, naturalmente, com muito mais rigor num sistema estatal. Só considerando todos os aspectos decorrentes destas questões é que se podem construir sistemas úteis, coerentes e robustos, sobre os quais possam assentar todas e quaisquer medidas de reorganização e modernização. Se isso for feito as ‘trombas de água’ passarão sempre ao lado.