sexta-feira, 30 de julho de 2010

O novo analfabetismo


Artigo de opinião publicado no diário ‘As Beiras’
em 26 de Julho de 2010


Numa sociedade em que praticamente todas as actividades são condicionadas pelas tecnologias da informação e comunicação (TIC), um novo tipo de analfabetismo começa a fazer-se sentir de forma particularmente aguda: o analfabetismo informático. Se até há pouco tempo ser ‘ignorante’ em termos de utilização básica de ferramentas informáticas era considerado incomum mas aceitável, nos dias de hoje esse desconhecimento é extremamente limitador e pode ter consequências drásticas.

O problema da iliteracia informática é praticamente inexistente nas camadas jovens, em idade escolar, não tanto pelas políticas de TIC no ensino – sempre questionáveis e deixando muito a desejar – mas pela própria natureza do ser humano. As crianças e jovens têm uma apetência e uma capacidade extraordinárias para lidar com o que é novo, para vencer desafios e para explorar tudo aquilo que desconhecem. Fazem-no com ou sem o apoio de adultos e educadores. Diria mesmo que, muitas vezes, o fazem apesar dos entraves que adultos e educadores constituem.

É em faixas etárias mais avançadas que o problema se coloca com mais acuidade. Salvo excepções que confirmam a regra, à medida que avançamos na idade a aversão a aprender instala-se e a primeira reacção a algo novo ou diferente é de negação, crítica, medo, ou mesmo repulsa. É assim em todas as áreas e as TIC não são excepção.

É curioso verificar que mesmo pessoas com elevado nível de instrução sofrem desta nova forma de analfabetismo. Por vezes, são mesmo os quadros mais qualificados, os gestores, os decisores, os responsáveis máximos de entidades e empresas que padecem desta ‘rara doença’. O resultado é que numa sociedade na qual um crescente número de mecanismos de gestão, controlo e decisão se baseiam em sistemas e aplicações informáticos, muitas acções críticas – como, por exemplo, autorizações, pagamentos e transferências electrónicos – passam a ser efectivamente realizadas, por delegação, por pessoal de apoio administrativo. É como se um presidente ou gestor de uma qualquer organização dissesse a um(a) secretário(a): “Assine-me este cheque (ou este contrato, ou este documento), pois não sei assinar”.

Para esses, talvez um mecanismo biométrico de autorização fosse interessante. Se ‘não sabem assinar’, então ‘ponham o dedo’, à moda de antigamente, já que estas modernices de nomes de utilizador, palavras chave, códigos secretos, assinaturas digitais e outras que tais são demasiado complicadas.

E se algum problema ocorrer por causa dessa falta de instrução, deveriam os responsáveis ser mandados, a título de castigo, para os bancos da escola – de informática, naturalmente – para perderem o medo do ‘bicho papão’ que, afinal, não come ninguém, e para abandonarem de uma vez por todas esse grupo em extinção dos analfabetos informáticos.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O inevitável Mundo Novo


Artigo de opinião publicado no diário ‘As Beiras’
em 12 de Julho de 2010


As tecnologias da informação e comunicação (TIC) permitem, hoje em dia, a recolha, processamento, troca e manutenção de espantosos volumes de informação. A sua utilização possibilita, em teoria ou na prática, um controlo sobre tudo o que fazemos (ou não fazemos), muito para além das então arrojadas – e, certamente, visionárias – ideias subjacentes a obras de ficção tão emblemáticas como ‘1984’ de George Orwell, ou o ‘Admirável Mundo Novo’ de Aldous Huxley. Pode dizer-se que, em muitos aspectos, a realidade ultrapassou já a ficção.

Tecnologicamente, é hoje possível um controlo rigoroso de tudo o que se faz, quando se faz, como se faz e onde se faz, para além de se poder manter informação detalhada sobre como somos e como estamos. De facto, sem nos darmos conta, já quase achamos natural que desde que saímos de nossas casas até que regressamos estejamos sob videovigilância. Também não nos apercebemos que sempre que mantemos o telemóvel ligado é registada, num qualquer sistema, a nossa localização. Sempre que se utiliza um meio de pagamento electrónico ou sempre que recorremos a um caixa automático há uma identificação inequívoca do que se fez e onde se fez. Sempre que acedemos à Internet, dados sobre o tráfego realizado têm obrigatoriamente que ser registados. Sempre que procedemos ao pagamento automático de uma portagem ou estacionamento, algo regista onde estivemos e por onde passámos. Sempre que iniciamos ou terminamos um período de trabalho, tal é registado, muitas vezes com recurso a identificação por dados biométricos. Sempre que recorremos a um sistema de saúde, dados clínicos são registados e processados.

Naturalmente que todas estas acções – com cobertura legal irrepreensível – são executadas a bem da segurança, da organização, da comodidade, da saúde, do progresso, etc., etc., mas se muitos de nós tivéssemos lido descrições delas há vinte anos atrás num qualquer romance ou obra de ficção sobre uma qualquer sociedade do futuro ficaríamos, certamente, preocupados. Afinal, a História já nos ensinou – infelizmente demasiadas vezes – que muitas ditaduras e atentados à liberdade são perpetrados em nome da segurança, da organização, da comodidade, da saúde e do progresso.

Por outro lado, quantos de nós estariam dispostos a abdicar de tantas comodidades só possíveis devido às TIC? Poderiam as sociedades modernas sobreviver sem as ferramentas de combate ao crime que elas potenciam? Queremos deixar de poder tirar partido das TIC para apoiar doentes, proteger crianças, promover a cultura, apoiar o comércio, defender a mobilidade e garantir a liberdade? Certamente que ninguém defende tal posição.

As TIC são poderosas armas, sem as quais já não podemos sobreviver. Cabe a todos nós estarmos conscientes do poder destas armas, por forma a podermos lidar com as ameaças que representam e com as oportunidades que nos oferecem, num Mundo Novo que tem tanto de admirável como de preocupante, mas que é, sobretudo, inevitável.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A superioridade do erro


Artigo de opinião publicado no diário ‘As Beiras’
em 29 de Junho de 2010


Todos nós já ficámos, uma ou outra vez, espantados com o que os computadores fazem, de tal forma que muitas vezes nos esquecemos de que são apenas máquinas. Por outro lado, espanto e admiração levam, frequentemente, à desconfiança e, não raramente, a afirmações contraditórias como “se está no computador é porque é certo” ou “deve tratar-se de um erro de computador”. Curiosamente, nenhuma destas afirmações é correcta já que, por um lado, os computadores são falíveis e, por outro, nunca se enganam. Será isto uma contradição? De facto, parece, mas está longe de o ser.

A falibilidade dos computadores resulta quer de avarias de hardware (as componentes ou circuitos electrónicos de que são feitos) quer de erros de software (os programas que por eles são executados). As falhas dos computadores são, de facto, bastante frequentes, podendo levar à sua completa inoperacionalidade.

Mas se os computadores falham, porque é que é incorrecto dizer que se enganam? Simplesmente porque os computadores não raciocinam, ou seja, não pensam, não são inteligentes. Apesar de poderem executar tarefas extremamente complexas, essa execução é ditada, directa ou indirectamente, por quem desenvolveu os programas em execução. E essa execução é cega, repetitiva, previamente pensada e determinada, obedecendo à lógica, seja ela perfeita ou imperfeita, do ou dos autores dos programas. Havendo erros – que os há frequentemente – não são do computador, mas sim das pessoas que determinaram o que a máquina deve fazer e como.

O engano e o erro são, de facto, prerrogativas da inteligência. E sendo certo que não existe uma definição consensual de inteligência, não é menos certo que ela é muito mais do que simples lógica, armazenamento e análise de dados ou representação de conhecimento, passando por criação e comunicação de ideias, consciência, capacidade de reflexão, capacidade sensorial, entre muitos outros aspectos.

Por muito que a chamada inteligência artificial tenha evoluído – apesar das sucessivas promessas falhadas que levaram a um certo descrédito desta disciplina na década de 1990 – e por muito que venha a evoluir, nunca será capaz de efectivamente criar e substituir a verdadeira inteligência e, por isso, nunca será possível que um computador cometa um engano genuíno. Poder-se-ão criar ‘enganos artificiais’, poder-se-á imitar – sob comando último de quem concebeu o software – aquele “engano da alma, ledo e cego”, mas tal não passará de uma ilusão, qual truque de prestidigitador.

Afinal, já há mais de dois mil anos que os romanos perceberam que ‘errare humanum est’. Talvez este ditado milenar, que muitas vezes invocamos quase sem pensar, nos faça reflectir um pouco e nos ensine que, apesar dos inconvenientes, existe alguma superioridade no erro, quanto mais não seja pelo facto de o erro nos tornar humanos e, portanto, incomensuravelmente melhores do que simples computadores.